A LITERATURA DO ANTIGO EGIPTO
 
A literatura do antigo Egipto pode ser interpretada de inúmeras maneiras, havendo muitas possibilidades de abordagem, da religiosa à mágica, passando por outras como a astronómica, a política ou a simbólica. Mas tal como a arte estava intrinsecamente ligada ao poder político e à religião, também a literatura cumpria o seu papel na sociedade, podendo-se afirmar que o seu primeiro objectivo era a formação. A ideia de uma literatura «para distrair», «para quebrar o tédio» não existia, a não ser como forma literária para lançar ideias com grande impacto na sociedade egípcia. Além desta componente pedagógica, tinham ainda uma componente didáctica, sendo também utilizados na formação de escribas, não só do ponto de vista caligráfico, gramatical e vocabular, mas também na sua formação pessoal através da abordagem dos temas. Mesmo ficcionados, eram normalmente construídos sobre uma base facilmente reconhecível no tecido natural ou social, que lhes dava credibilidade e sustentabilidade.
 
Quando se fala de literatura do antigo Egipto, desde logo afasta-se o conceito de uma literatura em sentido lato ou abrangente, que abarque toda a produção escrita conhecida como património literário do antigo Egipto. Pelo contrário, pretende-se tão-somente abarcar uma produção de carácter mais restrito que, independentemente do conteúdo e por força da sua qualidade estética, foi considerada trabalho de primeiro plano pela própria «crítica» egípcia da época. Através dela, os escribas legaram-nos valores e conhecimentos, pensamentos e crenças tão importantes, ou mais ainda, do que tudo aquilo que os seus empreendimentos de carácter mais visível nos podem transmitir. E isto, sem escamotear a certeza de só nos ter chegado uma pequena parte da produção literária egípcia! Vestígios fragmentados pelo tempo ou pela barbárie dos homens, cuja reconstituição de boa parte dos casos só tem sido possível através da utilização de várias cópias do mesmo texto, por vezes agravada por pertencerem a épocas diferentes. Outras vezes nem isso, conhecendo-se apenas um único e deteriorado exemplar.
 
Apesar de variada, a literatura egípcia que chegou até nós é, normalmente, organizada em cinco géneros: instruções, literatura das ideias, lírica, textos ideológicos e contos. Explicaremos cada um destes géneros e associar-lhes-emos textos que os integrem. Além disso daremos destaque a alguns desses textos, que podem ser a História de Sinuhe, o Conto do Náufrago, o Conto do Camponês Eloquente, a Instrução de Kheti, os Hinos ao rei Senuseret III, o Conto dos Dois Irmãos, O Príncipe Predestinado, A Tomada de Ipu, alguns poemas de amor, ou outros casos.
 
É da análise destes textos, em particular dos contos, que nascem as razões que tornaram deveras apreciadas as palavras de Gustave Lefebvre, muito interpelantes para os que se debruçam sobre esta temática: «Os contos oferecem-nos portanto a sociedade, a sua hierarquia, as suas diversas classes, como também as suas ideias morais e crenças religiosas, um quadro fiel, pleno de vida, com ricas cores, de detalhes cuidadosamente escritos, que nos permitem penetrar mais profundamente na alma egípcia. A este título eles interessam não somente à história da literatura, mas mais ainda talvez à da civilização». Acrescentemos que não são só os contos, mas os textos literários em geral, nos oferecem tudo isto: conhecer a literatura egípcia é a forma privilegiada de alcançar o modo de pensar e sentir da civilização egípcia, enfim, de estudar a «alma egípcia».
 
Um texto do Império Novo (Papiro Chester Beatty IV ou BM ESA 10684), datado da transição da XIX dinastia (c. 1307-1196 a. C.) para a XX (c. 1196-1070 a. C.), foi feito para exaltar a tarefa dos que escrevem e para sublinhar o valor intemporal do acto de escrever, que os letrados egípcios tanto cultivaram. A verdade é que, dizia já o escriba egípcio de há três mil e oitocentos anos, muitos túmulos de pedra desmoronaram-se e caíram no esquecimento, e com eles o nome dos seus proprietários, no entanto, os nomes dos escritores serão sempre recordados. Neste texto, o que mais impressiona, é a nomeação de oito autores «clássicos», os melhores, que viveram e produziram os seus trabalhos no Império Antigo e no Império Médio.
 
A IMORTALIDADE DOS ESCRITORES (3 últimas estrofes)
 
Um homem morre, o seu corpo está (estendido) no chão
 
e toda a sua família foi entregue à terra,
 
mas o que ele escreveu faz com que seja recordado
 
pela boca de quem disser a palavra.
 
Um rolo de papiro é mais útil do que uma casa construída
 
ou uma capela funerária no Ocidente.
 
Melhor do que esplêndidas casas de campo
 
ou uma estela comemorativa doada a um templo.
 
Há agora alguém como Hordedef?
 
Há outro como Imhotep?
 
Não nasceu ninguém na nossa geração como Neferti
 
e Kheti, o primeiro deles (todos).
 
Deixa-me lembrar-te os nomes de Ptahemdjehuti
 
e Khakheperréseneb.
 
Há outro como Ptahhotep
 
ou igual a Kaires?
 
Aqueles que sabem prever o futuro,
 
o que sai da sua boca vindo à existência
 
pode ser encontrado nas (suas) palavras.
 
Eles deram filhos a outros
 
como herdeiros dos seus (próprios) filhos.
 
Eles ocultaram a sua magia da terra inteira
 
para ser lida nas (suas) instruções.
 
Eles partiram, os seus nomes podem ter sido esquecidos,
 
Mas o que escreveram faz com que sejam recordados.
 
Doutor Telo Ferreira Canhão.