Nos meses de Verão, num dos poucos diários portugueses que ainda subsistem, fomos lendo uma polémica entre os historiadores Rui Ramos e Manuel Loff a propósito dos capítulos sobre o Estado Novo publicados pelo primeiro na sua História de Portugal, polémica essa a que se juntaram alguns outros historiadores, juristas, sociólogos e não sei mais quem. Tem sido uma bela polémica, com alguns exageros à mistura que não interessam para o caso.


Mas quero desde já sossegá-los: não sou mais um historiador a querer dirimir razões entre aqueles dois historiadores e professores universitários, embora sobre cada um deles e a sua obra tenha opinião feita obviamente pessoal. Para mim a questão é outra: será possível e aceitável haver já uma História do Estado Novo a tão curta distância da sua existência cronológica, escrita por historiadores criados nas suas estruturas, ainda que em derrocada após o golpe militar de 25 de Abril e a reorganização social e económica consequente, que na realidade, tratou de compor a outra face da “moeda única” que o tal Estado Novo criou?

 
Será tal possível quando ainda estão vivos e opinativos dirigentes, ministros, militares, clérigos e simples cidadãos que viveram, suportaram ou repudiaram o Estado Novo e que foram pais e avós da geração que hoje terá 30/40 anos, incluindo aqueles dois historiadores que se acusaram mutuamente de terem uma visão ideológica daquele período da História Contemporânea portuguesa, europeia e mundial? Creio bem que não: as glórias e as chagas ainda estão vivas e a poeira do tempo ainda não assentou. Basta ver a toleima, para não dizer infantilidade ou inconsciência, com que alguns comparam o que não é possível comparar, até por impossibilidade cronológica, os tempos de agora com «os tempos de Salazar». Compreende-se que a geração que nasceu depois de 74, ou que então era criança, não tenha uma noção real dos tempos estúpidos e cinzentos do «orgulhosamente sós». E então, para de tal saberem, terão de recorrer ou à memória dos vivos com cinquenta e mais anos e aos seus relatos forçosamente pessoais e parcelares ou aos documentos da época. Mas todos nós sabemos, mesmo sem sermos historiadores, que um documento pode ser verdadeiro e o seu conteúdo falseado, propositadamente ou não. A História não é uma questão de fé, mas ciência em busca da possível verdade. Mas a sociedade prefere-lhe o mito, a fantasia.
 
Todos nós conhecemos a história mitológica do passado, difundida pelas crenças. Ouvimos frequentemente alguém dizer que gostaria de ter vivido noutra época, com certeza na situação de privilegiado e não na de cavador de enxada. Há pessoas com o ar mais sério deste mundo que divulgam mitos, ou os seus relatos, como se de História se tratasse. A maior parte do público não distingue as fantasias históricas dos literatos e memorialistas da serena procura da possível descrição do passado. Por outro lado há situações e personagens do passado que são sistematicamente retiradas do seu contexto épocal e vilipendiadas ao longo dos séculos. De Herodes o Grande saberemos que mandava matar criancinhas, mas pouco sabemos da construção do grande porto de Cesareia que mandou fazer e que deu pão e abrigo a milhares de navegantes. E quanto a governantes responsáveis pela morte de criancinhas ao longo do nosso século XX, temos um extenso rol para vos apresentar que deixaria Herodes muito para trás.
 
Uma mitomania recente é aquela que os serviços de Turismo entre nós difundem fazendo crer que, no passado, havia multidões de peregrinos a caminho de Santiago de Compostela, como se fosse possível, até finais do século XIX, o povo andar a passear por esses caminhos fora. A efabulação está pois na ordem do dia e a preguiça mental encaixilha-a, aplaude-a e vende-a como ouro, quando não passa de latão. Ainda em anos recentes um livreco cheio de erros históricos crassos, que o pudor me impede de nomear, uma coisa que pretendia “por a nu” a vida de rainhas e princesas de Portugal, e que se vendia nos hipermercados ao lado dos sabonetes, esgotou pelo menos duas edições. O povinho gostou da coisa e mandou às malvas o lavor dos historiadores.
 
Eça de Queirós, que o não era, escreveu que «as ciências históricas são a base fecunda das ciências sociais (Prosas Bárbaras). O que se pede aos historiadores é pois mais ciência e menos ideologia. Ou talvez, seguindo Voltaire. «trabalhemos sem filosofar… porque é o único meio de tornar a vida suportável»(Cândido).
Mas então não será possível ir já estudando o século XX português? Creio bem que sim, mas com cuidado, com a vontade de não esquecer os mitos e seus mitómanos que assim se pretendem perpetuar, e sem ajudar a erguer novos mitos retroativos. Vamos a fatos; vamos a datas; vamos a números. E, mesmo esses, interroguemo-los sempre sem acreditar nas lombadas ou encadernações com que se apresentam. Então, talvez, tenhamos História, mesmo sendo a do historiador A ou a do historiador B. E, pelo sim pelo não, a dos historiadores será sempre melhor daquela que é feita pelos que o não são.
 
J. A. Gonçalves Guimarães